Virada amarga
Quando revejo as fotos que cliquei de São Luiz do Paraitinga há um ano e meio, durante a Festa do Divino, a tristeza aumenta. As imagens de hoje são de fazer chorar. As chuvas deixaram um gosto amargo nessa virada de década.
Fim de ano, compras na 25, com chuva
Sim. Eu cometi a sandice de ir fazer compras na Rua 25 de Março já em clima de Natal, um dia depois do rapa que provocou o corre-corre que foi contido com bombas de efeito moral.
Não passei pela mesma adrenalina, mas também tive que correr porque choveu. O jeito foi me espremer junto com mais 100 embaixo dos toldos até achar a entrada da concorrida Niazi Chohfi.
Mas fui recompensada. Achei tecidos lindos por uma pechincha. Pena só que, chegando em casa, quando fui ligar minha máquina de costura, ela não funcionou e tive de abortar o plano de produzir as lembrancinhas personalizadas que planejei para os meus queridos.
O jeito, então, foi respirar fundo e encarar um shopping no dia seguinte.
Pateta no trânsito
Após umas belas férias tratada como rainha, num paraíso tropical localizado no litoral da Bahia, volto para casa já pisando no tapete vermelho da típica educação secular paulistana da hora do rush.
No táxi, quase em frente à minha casa, eu só queria passar para a pista da direita, para poder desembarcar. Abro o vidro para cordialmente pedir passagem, e escuto um brado: “Não tá vendo que tá tudo parado?”
Respondo: “Sim, quando for possível”.
Mas o sujeito grisalho, bem apessoado, bem vestido, do tipo bem de vida, do tipo “de bem”, pegou birra e colou na traseira do carro da frente de forma a impedir propositalmente a passagem do táxi onde eu estava. Sorte foi que a minha pista andou mais que a dele e o taxista conseguiu se enfiar numa brecha logo adiante, para que eu pudesse desembarcar com um mundo de malas com roupas orgulhosamente sujas que trouxe.
Quando viu que era esse o objetivo do meu pedido, o sujeito “de bem” até tentou se redimir com uma risadinha de canto de boca e um gesto de “fazer o quê?”. Mas ouviu: “O senhor não tem educação”.
Esse episódio é pequeno e corriqueiro, mas me fez (com raiva) refletir sobre como é difícil ser cordial numa cidade como essa, sobre como nos acostumamos a ser maltratados e a tratar mal as pessoas em nome da pressa, do stress, do cansaço. Nos transformamos em seres rudes e individualistas toda vez que estamos no trânsito, toda vez que encaramos uma fila, toda vez que disputamos um espaço menos desconfortável dentro do metrô.
Na hora, me veio a lembrança deste memorável vídeo do Pateta e me deu vontade de pegar o primeiro táxi no sentido contrário e ir embora.
Adeus, vista
A minha vista do Memorial da América Latina já foi completamente coberta. Agora só falta o pouco de horizonte que tenho, desenhado pela serra lá atrás.
Não sei o que é trânsito
Trânsito é algo que raramente me irrita em São Paulo – sem ironia. Não tenho carro. Moro a 10 minutos a pé do terminal Barra Funda de metrô e ônibus. De lá, pego o fretado para o trabalho, num trajeto tranquilo que demora só mais 10 minutos. Percebam: nem da concorrência por um lugar nos espremidos vagões eu participo. E não gasto nada para me locomover do trabalho para casa. Assim, na maioria das vezes, eu só assisto à angústia e ouço as queixas dos demais paulistanos que perdem caros minutos de suas vidas parados nas ruas.
Sou uma privilegiada por não ter carro mesmo com o recente corte do IPI? Não. Sou satisfeita com o sistema viário e de transporte público de São Paulo? Não. Só acho que enfrentar diariamente esse trânsito insano pode ser também uma questão de escolha. Pode soar insolente tocar dessa forma no assunto, sendo hoje mais um daqueles dias de completo caos nas ruas, por causa da chuva e da enchente em alguns pontos. Mas o que quero dizer é que o trânsito é um tipo de preço que se escolhe ou não pagar.
Quando me mudei para São Paulo, cansada de viajar todos os dias de São José dos Campos para ir trabalhar, decidi: quero levar no máximo meia hora de casa até o trabalho, quero morar perto do metrô, num bairro fácil para ir para outros lugares. Foi uma questão de prioridade. Não digo que é uma maravilha, que todos devem fazer o mesmo, pois também pago um custo por isso. Se a minha prioridade fosse morar num lugar sossegado para criar filhos, relaxar, etc, talvez eu estivesse disposta a pagar por isso enfrentando trânsito. Lógico que o ideal seria todos poderem escolher entre morar no centro ou distante sem enfrentar trânsito. Mas esse mundo, por enquanto, não existe.
Olhar para o centro e para dentro
Desde que me mudei para São Paulo, há seis anos, um grande prazer para mim é mostrar o centro da cidade a quem vem me visitar. É uma experiência duplamente interessante. Um: pelo turismo em si. Dois: pelo prazer de ver certos preconceitos se desfazendo. São Paulo, todo mundo sabe, tem aquela fama de fria, durona, perigosa, feia, poluída e suja. Mas quando você se propõe a conhecê-la, um pouco que seja, começa a perceber que esses conceitos não são tão extremos assim. Chamo de conhecer o não se contentar com a casca, o olhar para dentro. E quando a gente vai ao centro de São Paulo, principalmente se for numa manhã ensolarada de sábado, percebe que essa armadura de concreto guarda muita delicadeza.
Não vou me esquecer de um passeio desses pelo centro que fiz com a minha mãe. Depois de seguir sem roteiro definido, passando por pontos clássicos mas desconhecidos para ela, como Theatro Municipal, Praça do Correio e o Mosteiro São Bento, encerramos o passeio na região da Praça da Sé. E, assim, resolvi mostrar por último o Pátio do Colégio, lugar onde São Paulo foi fundada, logo ali do lado. No momento em que saímos do estreito corredor da Rua Boa Vista e chegamos ao páteo, minha mãe não conteve a surpresa: “Oh!”
Foi fácil ler seus pensamentos. Sim, mãe. Essa construção colonial tão singela, pequena perto das outras e “bonitinha”, como ela descreveu sorrindo, sobrevive aqui sozinha bem no meio desse centro todo porque São Paulo tem o dom do contraste e do diverso.
Amanhã, a capela do Pátio do Colégio será reaberta após meses de restauração: um bom motivo para voltar a visitá-la.
Despedida do horizonte
Nos três anos que cobri mercado imobiliário, me cansei de escrever sobre verticalização, valorização, revitalização da Barra Funda – pra quem não conhece, um antigo bairro industrial. Como um médico que se sente imune a doenças, eu que sou moradora do bairro escrevia como se essa transformação nunca pudesse me afetar.
E até por entender do assunto, consegui alugar um apê num lugar com preço de Barra Funda, perto da infra de Perdizes – pra quem não conhece, um tradicional bairro de elite. E ainda morar num apartamento de fundos, sem o barulho da avenida e com uma charmosa vista do Memorial da América Latina, sempre foi motivo de orgulho pra mim.
Mas a cidade não é estática e veio se aproximando. Um dia, olho pela janela, e vejo que algo mudou. O terreno plano do estacionamento em frente, que me garantia uma visão até que ampla da antiga região de várzea, estava sendo preparado para o nascimento de mais um prédio, cujo lançamento provavelmente entrou nas estatísticas citadas em minhas matérias.
Agora, o barulho da obra, às vezes até de madrugada, conversa comigo diariamente sobre verticalização. A ironia é que, de tanto que valorizou o bairro e a cidade toda, a conta de uma mudança hoje sairia cara demais. Resta, por enquanto, seguir na contagem regressiva para o dia em que o concreto vai cobrir por inteiro meu horizonte.
São Paulo me engoliu
Com essa grandiosidade toda, um dia São Paulo me fascinou. Me fez querer viver nela. Me fez querer conhecer suas nuances, ruas e becos, passar noites em claro nos seus bares, degustar sua diversidade, seus encantos. Com o tempo, ela me engoliu. Mas São Paulo dá trabalho. E cobra caro pelos minutos. Consome a gente de tanto que grita. ‘Concrete jungle, say what do you got from me’, a intimei um dia. E ela agora retruca todas as manhãs com o bate-estaca do novo prédio que sobe à minha frente matando a vista cinza que tenho do Niemeyer. Brigamos. Às vezes, desejo fugir e dizer: ‘É pra nunca mais’. Mas ela me tem, ela sabe, enquanto me dá trabalho. Hoje, estamos tentando superar essa crise. Eu faço uma yoga logo cedo para não ser acordada por seus berros. E a essa hora seu trânsito me recebe com um pouco mais de bom-humor. E, assim, vamos vivendo. Ela me dando seu abrigo. E eu tentando perdoá-la.